Dia Mundial da Poesia
Julgo que o primeiro contacto com poesia aconteceu no longínquo 6º ano (onde isso já vai..). O meu professor de português desse ano era um apaixonado por Fernando Pessoa. Conseguia enfiar um poema ou apenas uma frase dele em todas as aulas. Mas foi quando ele fez uma espécie de leitura encenada do poema "Todas as cartas de amor" que comecei a gostar de poesia. Admito que o gosto por poesia teve altos e baixos ao longo da minha vida, mas, nos últimos tempos, a nossa relação melhorou um bom bocado (a culpa é da Florbela Espanca). Uns anos mais tarde, juntamente com dois colegas, fizemos algo parecido, mas com o poema O Mostrengo. Lembro-me de ver o meu professor no meio da audiência e de ter sido o primeiro a levantar-se para aplaudir. Admito que fiquei um pouco emotiva na altura. Era a pessoa que me apresentou Pessoa, a ver-me declamar Pessoa e ter elogiado o trabalho que fizemos. E, fazendo uma pequena reflexão, não sei porque não o continuamos a fazer...
Voltando ao motivo pelo qual comecei a escrever este post, neste dia mundial da Poesia, não conseguia pensar em nada melhor do que Pessoa, o meu eterno amor. (Quem me dera ter um vídeo do meu professor a declamar este poema... Porque raio não havia telemóveis com câmara na altura????)
Todas as cartas de amor...
Todas as cartas de amor são
Ridículas.
Não seriam cartas de amor se não fossem
Ridículas.
Também escrevi em meu tempo cartas de amor,
Como as outras,
Ridículas.
As cartas de amor, se há amor,
Têm de ser
Ridículas.
Mas, afinal,
Só as criaturas que nunca escreveram
Cartas de amor
É que são
Ridículas.
Quem me dera no tempo em que escrevia
Sem dar por isso
Cartas de amor
Ridículas.
A verdade é que hoje
As minhas memórias
Dessas cartas de amor
É que são
Ridículas.
(Todas as palavras esdrúxulas,
Como os sentimentos esdrúxulos,
São naturalmente
Ridículas.)
O Mostrengo
O mostrengo que está no fim do mar
Na noite de breu ergueu-se a voar;
À roda da nau voou três vezes,
Voou três vezes a chiar,
E disse: «Quem é que ousou entrar
Nas minhas cavernas que não desvendo,
Meus tectos negros do fim do mundo?»
E o homem do leme disse, tremendo:
«El-Rei D. João Segundo!»
«De quem são as velas onde me roço?
De quem as quilhas que vejo e ouço?»
Disse o mostrengo, e rodou três vezes,
Três vezes rodou imundo e grosso,
«Quem vem poder o que só eu posso,
Que moro onde nunca ninguém me visse
E escorro os medos do mar sem fundo?»
E o homem do leme tremeu, e disse:
«El-Rei D. João Segundo!»
Três vezes do leme as mãos ergueu,
Três vezes ao leme as reprendeu,
E disse no fim de tremer três vezes:
«Aqui ao leme sou mais do que eu:
Sou um Povo que quer o mar que é teu;
E mais que o mostrengo, que me a alma teme
E roda nas trevas do fim do mundo;
Manda a vontade, que me ata ao leme,
De El-Rei D. João Segundo!»